Disciplina - Filosofia

Filosofia & Ciências

10/11/2014

Nietzsche na Itália

Roberto Muggiati, especial para a Gazeta do Povo

“Como posso ter suportado viver até agora?” exclamou Friedrich Nietzsche ao chegar a Nápoles em sua primeira viagem ao Sul. Era 1876, o filósofo tinha 32 anos e estava em meio a uma crise mental e física, com nevralgias e enxaquecas devastadoras que o punham frequentemente de cama. Insatisfeito com o cargo de professor de filologia na Universidade de Basileia, iniciara sua ruptura com a grande influência do seu pensamento até então: a música de Richard Wagner.

Lançado em junho no Brasil, o livro de Paulo D’Iorio, Nietzsche na Itália — A Viagem Que Mudou os Rumos da Filosofia (Zahar), relata essa intensa aventura cultural por que passou um dos pensadores mais influentes do nosso tempo. (Repararam quantas citações Woody Allen faz a Nietzsche em seu último filme, Magia ao Luar?) Na atmosfera napolitana, o pensador experimenta uma verdadeira iluminação, como descreve D’Iorio:

“Em Sorrento, no grande quarto do segundo andar de sua pensão, que dá para um bosquezinho de laranjeiras e, mais ao longe, para o mar, o Vesúvio e as ilhas do golfo de Nápoles; nas tardes luminosas do outono, silenciosas e perfumadas pelo aroma das laranjas, ainda impregnadas do sol do meio-dia e do sal do mar; durante os serões de leitura em voz alta, com amigos, ou durante as excursões a Capri ou ao Carnaval de Nápoles; durante passeios pelas aldeolas que se debulham ao longo de um dos mais belos golfos do mundo, nessa terra onde os antigos acreditavam escutar as sereias; durante as manhãs passadas escrevendo os primeiros aforismos de sua vida, cujos rascunhos conservam até hoje o nome de Sorrentiner Papiere, Nietzsche decide tornar-se filósofo.”

Foi a condessa Malwida von Meysenbug, intelectual, autora de Memórias de Uma Idealista, quem organizou a viagem de Nietzsche e convidou os amigos do filósofo Paul Rée e Albert Brenner para participarem da excursão. Malwida e sua camareira Trina instalaram-se com o trio na Pension Allemande, na Villa Rubinacci, a quinze minutos a pé de Sorrento, para desagrado de Richard e Cosima Wagner, que os queriam perto do seu pomposo Hotel Vittoria. Nietzsche e seus amigos caminhavam pelos laranjais e bosques de oliveiras, almoçavam à beira-mar, junto aos pescadores de Sorrento, degustando ostras fresquíssimas com espumante Asti. Logo, os locais o chamavam de Dom Federico. Os serões eram marcados por uma animada competição de aforismos, muitos deles inspirados nas anedotas dos pescadores.

Na Itália, Nietzsche iniciou um processo de rejeição da sua cultura e da própria pátria. (Não por acaso, viveu grande parte da vida e morreu como apátrida, tendo renunciado à nacionalidade alemã para trabalhar na Suíça.) D’Iorio detalha como Nietzsche escreveu sobre “essa primeira revelação da magia do sul, quando o pôr-do-sol sobre Posillipo lhe abriu bruscamente os olhos”:

“Como posso ter suportado viver até agora! Enquanto o veículo rodava por Posillipo – luz do entardecer.

Posillipo e todos esses cegos cujos olhos serão abertos.

Não tenho força suficiente para o norte: lá reinam almas grosseiras e artificiais que trabalham tão assídua e necessariamente na medida da prudência quanto o castor em sua construção (...) o norte da Europa está repleto disso. E pensar que foi entre elas que passei toda a minha juventude. Eis o que me impressionou quando pela primeira vez vi chegar o entardecer com seu vermelho e seu cinza aveludados no céu de Nápoles – como um arrepio, como por pena de mim mesmo pelo fato de ter começado minha vida sendo velho, e me vieram lágrimas e o sentimento de ter sido salvo, inda que no último instante.

Eu tenho disposição suficiente para o sul.”

Nietzsche pretexta uma consulta a um oftalmologista para ver o Carnaval de Nápoles. Em meio ao desfile, enxerga, numa viela vizinha, a passagem de um solene cortejo fúnebre. O filósofo transfigura o Carnaval mesclado à morte num vislumbre da superação do sombrio ritual católico pelo homem moderno.

O idílio mediterrâneo de Nietzsche não dura muito. Tendo chegado a Nápoles em 25 de outubro de 1876, ele deixa Sorrento em 7 de maio de 1877 – apenas seis meses depois. Volta ao Norte sombrio, onde morre, em Weimar, no alvorecer do século 20: em 1900, aos 55 anos. Mas sonha sempre em voltar a viver no Sul. Escreve D’Iorio:

“Já em setembro de 1877, durante uma noite de insônia passada encantando-se com as adoráveis imagens da natureza sorrentina, ele se interroga sobre a possibilidade de viver nos altos da ilha de Capri, em Anacapri. Durante o verão de 1879, Nietzsche ainda cogita passar o inverno nos arredores de Nápoles. Mas, ao saber que Wagner tem intenção de se estabelecer ali, o que realmente fará a partir de janeiro de 1880, Nietzsche prefere desistir de seu projeto.”

A influência dos dias felizes passados em Sorrento o acompanha até o fim. A forma condensada da anedota dos pescadores levou Nietzsche à escolha do seu meio de expressão favorito a partir daí: o aforismo. Matutavam os humildes de Sorrento: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele os seus planos para o futuro”. Ideia que o novo Nietzsche, de cabeça feita pelo sol do Mediterrâneo, transfigurou para: “Eu sempre rio daquele que não sabe rir de si mesmo.”

Torna a Surriento

Cabe aqui um puxão de orelha em Paolo D’Iorio. Apesar de sua erudição – ou talvez por causa dela – ele escreve, no último capítulo, intitulado Torna a Surriento: “Na lembrança da primeira temporada em Sorrento, ele [Nietzsche] pensa frequentemente em seguir o conselho de uma antiga canção italiana intitulada Torna a Surriento/Retorna a Sorrento.” Ignora D’Iorio que a famosa canção só foi publicada oficialmente em 1905, cinco anos após a morte do filósofo. Ninguém esquece os primeiros versos, em dialeto napolitano: “Vide’o mare quant’è bello,/ spira tantu sentimento...” Gravada pelos maiores cantores do mundo, frequentou até as paradas de sucesso. Entre os que a prestigiaram figuram os italianos Enrico Caruso, Beniamino Gigli, Giuseppe Di Stefano Luciano Pavarotti, Ruggero Raimondi; os ítalo-americanos Mario Lanza, Frank Sinatra (“Come Back to Sorrento”) e Dean Martin (“Take Me In Your Arms”); o americano Elvis Presley (“Surrender”) e Meat Loaf; os espanhóis José Carreras e Plácido Domingo; E o brasileiros Jerry Adriani. A música foi composta em 1902 pelos irmãos Ernesto (música) e Giambattista (letra) De Curtis, durante uma visita a Sorrento do Primeiro Ministro italiano Giuseppe Zanardelli, cobrando-lhe as promessas de melhoramentos à cidade, principalmente a rede de esgotos... Se as promessas foram cumpridas, ninguém lembra, mas a canção ficou eternamente presente como a marca registrada de Sorrento.

caricatura de Nietzsche

Ver Nápoles... e depois morrer


"O ditado popular não valeu para mim. Ao contrário, renasci depois de ver Nápoles e o entorno do seu golfo. Mas valeu para o líder abolicionista e republicano Antônio da Silva Jardim. Em 1891, aos 30 anos, fazendo turismo na cratera do Vesúvio, foi tragado por uma fenda do vulcão. (O correligionário José do Patrocínio o exaltou: 'Até para morrer, virou lava.') Outro que viu Nápoles e morreu foi o bancário londrino Thomas Wilson, do conto de Somerset Maugham The Lotus Eater. Conheceu a ilha de Capri numa viagem de férias e apaixonou-se. A mulher e a filha morreram, ele se aposentou precocemente e juntou dinheiro para morar 25 anos na ilha num ócio consciente e despreocupado. Acabados os recursos, definhou e morreu. Foi feliz enquanto durou.

Cheguei a Nápoles de trem às dez da noite de um domingo e a primeira coisa que fiz foi correr atrás de uma autêntica pizza napolitana. Um horror! Descobri que a melhor pizza napolitana do mundo se come em São Paulo. Verão alto, rodei pela região, hospedando-me barato nos albergues da juventude de Sorrento e de Nápoles (em Posillipo, que em grego, significa 'a trégua das dores.') Sorrento fica a meia hora de barca de Capri. Pude entender o fascínio da ilha e por pouco não me tornei um Thomas Wilson. Naquele ano de 1961, a Europa ainda era uma aldeia. No meu primeiro réveillon fora de casa, 1960/1961, fui a Frankfurt atrás de uma colega alemã da Alliance Française de Paris, Marlene Cremer. Seus telefones não respondiam, devia estar numa estação de esqui, filha de banqueiro que era. Passei o Ano Novo sozinho debaixo da neve. Pois logo no meu primeiro dia em Capri, numa piscina com vista para os Faraglioni – aqueles rochedos pontudos onde Ulisses ouviu o canto das sereias – dou de cara com Marlene Cremer. Instalou-me numa pensione em meio a um vinhedo com a mais bela vista que já desfrutei na vida. Saímos para jantar, ela acompanhada de um cavaleiro galante italiano com trejeitos esquisitos. E foi cada um para o seu lado. Nossas preferências sexuais simplesmente não combinavam. Capri, c’est fini!

Tornei-me usuário da Ferrovia Circumvesuviana, um trem parador de bitola estreita que levava uma hora de Sorrento a Nápoles, fazendo escala em cidades como Vico Equense, Castellammare di Stabia, Torre Annunziata, Torre del Greco, Ercolano e Portici. Eu partia de Sorrento às sete da manhã, uma hora de viagem até Nápoles. Sempre cabia mais um, a cada estação entrava um monte de operários saídos de filmes neorrealistas como Ladrões de Bicicletas. No meio do caminho ficava Pompeia, cidade de férias dos cidadãos mais abastados do Império Romano, coberta por uma chuva de cinzas na erupção do Vesúvio em 79 e soterrada durante 1.600 anos. A calamidade congelou os habitantes de Pompeia em suas atividades normais – houve até flagrantes de casais fazendo amor – e ela se tornou um dos mais excitantes sítios arqueológicos do mundo. (Cabeça já feita em Curitiba pelo filme Os Últimos Dias de Pompeia, de 1935.)

Incursionei também ao sul de Sorrento, pela costa amalfitana, percorrendo temerariamente de ônibus a estrada estreita cortada no penhasco rochoso – não havia espaço para dois ônibus na pista, mas, por um destes milagres italianos, eles sempre seguiam viagem sem maiores problemas. Praiano, Positano, Amalfi e, no alto da montanha, a maravilhosa Ravello – não por acaso o dândi Gore Vidal viveu lá num deslumbrante palacete. Passei num domingo pela urbana Salerno – não me comoveu, exceto pela lembrança da invasão aliada por lá, com os pracinhas da FEB – e fui almoçar à sombra das ruínas do templo grego em Paestum, suas colunas dóricas bafejadas por lagartixas, onde me deliciei com um prosciutto e ficchi transcendental – minha madeleine proustiana dessa Viagem à Itália".
Esta notícia foi publicada no site Gazeta do Povo em 08 de Novembro de 2014. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do autor.
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