Disciplina - Filosofia

Filosofia & Ciências

14/11/2007

É preciso reavivar a civilização

Eduardo Subirats, filósofo:
É preciso reavivar a civilização

     Este pensador espanhol, professor da Universidade de Nova York e autor de “A Flor e o Cristal”, vê regressão perigosa à atitude antiintelectual dos velhos fascismos

Jotabê Medeiros escreve para “O Estado de SP”:
O filósofo espanhol Eduardo Subirats, professor de estética, literatura, arquitetura, filosofia e teoria cultural, lecionou em Caracas, Madri, México e Princeton (e na USP, em SP, como professor convidado). Atualmente, dá aulas na New York University.
É autor de uma série de ensaios sobre teoria da cultura, crítica do colonialismo, estética das vanguardas e filosofia moderna. Também conhece com profundidade a questão cultural brasileira e latino-americana, às quais se dedica há décadas. Seu livro mais recente é La Existencia Sitiada (México, 2006).
Recentemente, esteve na USP, para um debate sobre estética com especialistas do mundo todo. A comunidade gostou de rever Subirats, tanto que o convidou para voltar: ele regressa amanhã à cidade como convidado de um seminário sobre museus, organizado por Ana Cristina Carvalho e o governo do Estado de SP. “Havia três anos que eu não vinha a SP. Já estava morrendo de saudades. Encontrei o que sempre encontro aqui: um público vivaz, crítico, informado, e intelectualmente insaciável. A USP segue sendo hoje o centro universitário mais importante de América Latina”, disse o filósofo. Ele concedeu a seguinte entrevista ao Estado:
O sr. tem uma formulação sobre os museus de SP na qual fala de “um conceito renovador e revolucionário de integração da arte nas megalópoles tardo-industrial, que revela um novo sentido para a criação artística, rompendo as barreiras acadêmicas e administrativas do museu tradicional”. Em que base se assenta essa afirmação?
O primeiro segredo dos museus paulistas é sua arquitetura. O Masp é um grandioso exemplo nesse sentido. Não é que você tenha de ir até ele, mas se caminha pela Avenida Paulista se sente tragado por ele. Não se pode resistir à sedução e à potência de seu espaço, que parece querer estreitar a cidade que se estende a seus pés. A concepção de seu espaço interior e de sua coleção tem as mesmas características da surpresa, do envolvimento, o jogo, a liberdade. Desgraçadamente esse museu tem sido liquidado nos últimos anos. No outro extremo, SP tem sido a sede das sucessivas edições do projeto Arte/Cidade, organizadas por Nelson Brissac. Também Brissac desenvolveu um conceito revolucionário de interação entre arte e cidade, ainda que num sentido diferente daquele que Lina Bo desenvolveu em sua lendária exposição de arte popular na Bahia ou no Sesc Pompéia. Nelson põe o artista a dialogar diretamente com a cidade como espaço físico e realidade humana. O resultado é uma concepção aberta e revolucionária da arte e uma transformação da vida urbana. São só dois exemplos extremos, tem mais...
Há alguns anos, o sr. disse que “Hollywood, Disneylândia, Guggenheim e Las Vegas” eram “semiologias digitalizadas intelectualmente empobrecidas e esteticamente degradadas” e que “representam o triunfo político de um novo colonialismo do espetáculo”. Qual seria a resistência possível a esse novo colonialismo?
Faz anos critiquei a cultura do pop norte-americano associada com o pós-moderno. Hoje não é necessário “resistir” a isso. É um cadáver. Não quer dizer que não mobilize inversões econômicas e massas humanas. Há 10 anos, era preciso criticar a transformação do museu em shopping, como a expressão de uma decadência cultural que ameaçava globalizar-se. Hoje assistimos ao seu reverso: a transformação do shopping em museu, do comércio da obra de arte e da estupidez em valor cultural. Os desenhos de Koolhass são a expressão sofisticada dessa regressão. Seu vazio, seu cinismo e seu sentido antidemocrático não são menos ostensivos. A globalização das guerras, a ameaça de uma Terceira Guerra Mundial com armas nucleares, é a última expressão desse niilismo confundido com o global.
A mudança cultural e artística na América Latina também tem, em sua opinião, uma correspondência com o político e o social?
As transições democráticas dos anos 80 não trouxeram uma mudança cultural verdadeira na América Latina, nem nos países do Leste Europeu, nem na Península Ibérica. O que trouxeram é a americanização de quase todos os aspectos da cultura, desde as bibliografias acadêmicas até os McDonald”s, passando pelo milho e a soja transgênicos. Pode-se falar de mudança frente a uma obra como a de Niemeyer ou Burle Marx, ou frente ao pensamento de Darcy Ribeiro ou Guimarães Rosa. Eles assinalam uma mudança porque dividem um antes e um depois. São obras que abrem uma perspectiva artística, intelectual e social nova. Hoje vivemos um grande vazio, um enorme niilismo e uma terrível angústia frente ao futuro.
O sr. viu o filme Tropa de Elite no Brasil? A discussão aberta da violência urbana pode ter reflexos sobre a própria violência urbana?
Sobre esta classe de películas deve-se recordar que a diferença entre o culto à violência e a reflexão sobre a violência é tão tênue como uma brisa. Além do mais, o problema da violência urbana não se resolve com filmes, mas com uma vontade política de acabar com ela. Porém, hoje, assistimos mundialmente ao fenômeno oposto. Desde Bagdá até Tijuana, o crime organizado é um dos grandes negócios do século: o tráfico ilegal de drogas, armas e seres humanos que este crime ampara militar ou paramilitarmente é um dos grandes dilemas do nosso tempo.
Como o sr. analisa o papel do intelectual latino-americano na discussão sobre a mudança de governos para a esquerda na América Latina? A filósofa Marilena Chaui acusou intelectuais aqui de fazerem “a invenção da crise” no Brasil.
Creio que a discussão intelectual sobre o futuro da América Latina parou ali onde a deixaram os grandes escritores da segunda metade do século passado, alguns dos quais ainda vivem. Me refiro a obras como as de Eduardo Galeano, Octavio Paz, Darcy Ribeiro, José María Arguedas, Augusto Roa Bastos, Angel Rama. Esses escritores postularam uma crítica do colonialismo pós-colonial, definiram conceitos de democracia social e de diálogo entre as diferentes culturas que se encontram na América. Esses intelectuais criaram uma linguagem, um estilo, um pensamento autônomos e profundamente arraigados na memória, nas formas de vida, e nas desesperanças como nas esperanças dos povos americanos. E todos eles deram uma autêntica projeção universal a suas idéias. Essa abordagem intelectual simplesmente foi varrida do mapa. Melhor dizendo: a poderosa indústria cultural dos EUA conseguiu relegar esses autores à categoria de informantes locais e a suplantá-los pelo discurso prêt-à-porter promovido pela indústria cultural e a maquinaria acadêmica global: o desconstrucionismo, os “cultural studies”, o pop, um feminismo que incorporou em vez de criticar o patriarcalismo, um multiculturalismo banal, etc. Creio que hoje é preciso retomar esses problemas, reformulá-los e repensar o projeto de uma sociedade aberta, de uma democracia formulada a partir das exigências sociais e ecológicas de sobrevivência; é o momento de replantar os valores da civilização latino-americana. E o Brasil ocupa geopolítica e culturalmente um papel central nesse processo de reflexão.
Como analisa a questão das elites na América Latina?
O que distingue intelectualmente uma elite não é o poder político ou institucional da classe que seja. O poder institucional define a burocracia, o intelectual orgânico ou a estrela literária. O que distingue uma elite intelectual em um sentido estrito não é o poder político, mas a capacidade de desenvolver uma crítica, de criar uma forma de ver, de pensar e de ser, reside na força reformadora e transformadora das linguagens e a consciência de uma sociedade. Nesse sentido, hoje vivemos em uma era antielitista, um antielitismo que se crê democrático, mas na realidade recolhe o pior da herança antiintelectual dos velhos fascismos. Vivemos em uma era na qual o papel educador e orientador dessas elites intelectuais tem sido tomado e monopolizado pelo burocrata acadêmico, pela estrela da mídia, pelo agente editorial, pelo administrador político.
E como vê a emergência da questão da corrupção nos governos de esquerda latino-americanos?
A corrupção é consubstancial a toda concentração de poder político. Porém, o que mede a saúde e eficácia das instituições democráticas é sua capacidade de controlá-la. Os casos de corrupção são indicadores de um sistema democrático falido.
Como analisa o Brasil do governo Lula? Acha que mudou muito desde o governo do intelectual Fernando Henrique Cardoso para o do ex-operário Lula?
Desde minha distância de nova-iorquino, me resulta difícil perceber as diferenças. Vejo melhor as semelhanças. Ou, para dizer com outras palavras: desde a minha primeira visita, que coincidiu com a impressionante manifestação pelas Diretas Já no Vale do Anhangabaú, vejo o Brasil em um processo contínuo de crescimento. Creio que o Brasil se encontra hoje em um momento fascinante no qual pode concentrar suas forças econômicas e intelectuais e afirmar globalmente sua originalidade. Ao fim e ao cabo, o Brasil conta com o mosaico de culturas mais intenso de todas as Américas.
Quais pontos de contato o sr. vê entre os governos do Brasil, Venezuela e Bolívia?
Com Bolívia e Venezuela, com Argentina e Paraguai, com Peru e Colômbia. Brasil é esse gigante plantado no coração da América do Sul. E isso quer dizer que deve desenvolver todo seu potencial de diálogo, integração e desenvolvimento com todas essas nações, independentemente de suas constelações políticas circunstanciais. A questão não é se tal país tem um governo de direita ou de esquerda. A questão é a criação e o desenvolvimento de uma civilização americana. Vocês tem um maravilhoso centro cultural, o Memorial de América Latina, que Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer levantaram com esse objetivo intelectual, artístico e político de diálogo e integração latino-americana.
O sr. é autor de diversos livros sobre a América Latina. Fernando Henrique Cardoso, uma vez, disse: “Esqueçam tudo que escrevi.” Do ponto de vista filosófico, o sr. poderia dizer algo assim, que algum dos seus livros não é mais essencial?
Você não tem que esquecer o que escreveu porque não escreveu para ser recordado. Escrever é para mim um ato de sobrevivência elementar. Como aquele menino que vai deixando pedrinhas ao longo do caminho para poder olhar para trás e ver por onde andou, para não se perder e para poder seguir adiante num mundo obscuro.
Obras
Em português: A Editora Nobel tem três livros de Eduardo Subirats em seu catálogo: “A Penúltima Visão do Paraíso” (166 págs., R$ 39); “A Flor e o Cristal” (216 págs., R$ 35); e “Vanguarda, Mídia, Metrópoles” (88 págs., R$ 26).(O Estado de SP, 11/11)

Fonte: Jornal da Ciência, e-mail 3388, de 12 de Novembro de 2007.
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